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Um testemunho de denúncia, tristeza e proximidade

Ir. Mónica da Rocha | 30-03-2021 Um testemunho de denúncia, tristeza e proximidade

A Congregação das Irmãs Reparadoras de Nossa Senhora de Fátima está presente em Lichinga, na província do Niassa, em Moçambique, desde outubro de 2001. Atualmente residem na missão duas religiosas e quatro jovens aspirantes.


Maria Mónica Moreira da Rocha é neste momento a irmã responsável pela Casa do Imaculado Coração de Maria.

Em testemunho escrito que abaixo se divulga na íntegra, a Irmã Mónica da Rocha, com 21 anos de vida religiosa, partilha como têm sido vividos os últimos tempos naquela missão, que dista 454 quilómetros de Cabo Delgado, de onde também chegam as famílias que fogem à perseguição e à morte.

A sua descrição é um grito de revolta e alerta. A religiosa aponta silêncios, falta de liberdade de expressão, perseguições e atropelos à dignidade e à vida humana. Na primeira visita o campo de refugiados de Malica, a irmã Mónica encontrou tristeza, desalento e desesperança. No Natal de 2020 foi dinamizada uma campanha caritativa, que foi um sucesso. Foi possível ajudar, estar próximo. Na terceira visita da religiosa ao campo de refugiados, a irmã encontrou sorrisos nas crianças e um pedido muito especial: uma bola. De forma positiva, a irmã Mónica da Rocha destaca a bondade do povo, que partilha o pouco que tem; e agradece às pessoas e entidades que colaboram para suprir as necessidades básicas, preocupações que ali desvalorizam os medos da pandemia.

O testemunho da irmã Mónica da Rocha:

O Cenário

CABO DELGADO… terra de novas oportunidades, com imensos recursos naturais… uma das zonas de Moçambique mais visitada por turistas, MAS, isso é passado porque no presente parece um cenário de um filme de terror que se repete diariamente e nunca mais acaba…

Sinto revolta e impotência perante esta realidade. Revolta porque considero que já há muito se poderia ter acabado com esta guerra tão cruel e sem sentido, a começar pelo próprio governo que internamente se mantém em silêncio e passa uma mensagem ao povo de que tudo está bem e sob controlo.

A sensação é a de que a província de Cabo Delgado não pertence a Moçambique, pois nas notícias nacionais fala-se de muita coisa, mas, pouco ou nada é relatado sobre esta situação, e infelizmente os poucos jornalistas que iam denunciando algumas situações foram ameaçados ou desapareceram. A liberdade de expressão é oprimida, existe medo de falar, e quem o faz, corre risco de vida.

Para mim, pessoalmente, esta é das piores guerras que podem existir pois é uma guerra de conflitos, de interesses, onde o próprio governo tem interesses.

Sinto impotência por ouvir tantos relatos de pessoas que foram decapitadas, e por ver o sofrimento no olhar de quem viu os seus familiares e conhecidos serem selecionados para morrer.

A Missão das IRNSF

A minha Congregação, das Irmãs Reparadoras de Nossa Senhora de Fátima, encontra-se em Moçambique na província do Niassa, em Lichinga. Cá temos uma Escolinha onde recebemos cerca de 160 crianças em idade pré-escolar, auxiliamos na pastoral paroquial, ajudamos algumas famílias com mais necessidades e tentamos dar resposta aos pedidos que nos chegam quer a nível de dar formação como de ajudar a colmatar algumas dificuldades não só a nível económico.

Neste momento, devido à pandemia da Covid-19 que assola o mundo, já estamos há mais de um ano com a Escolinha fechada e sem atividades na paróquia e na comunidade envolvente. Apesar de sermos só duas irmãs e de termos connosco quatro meninas que aspiram a ser irmãs, procuramos adaptarmo-nos em cada dia a esta nova realidade tão desafiadora como angustiante, pois, se as dificuldades para este povo já eram muitas, agora são imensas.

Aqui pensa-se na pandemia de uma forma diferente pois as necessidades básicas são muitas e os recursos são poucos.

Contudo, este povo sofrido é solidário. Quando começaram a chegar aqui os deslocados, o governo criou alguns centros de apoio e campos com tendas para os acolher, mas muitos e muitos mais começaram a chegar e estes espaços tornaram-se insuficientes. Mas, felizmente graças à boa vontade de muita gente, muitos dos deslocados, foram acolhidos nos bairros, pela população, em suas próprias casas ou alguma casa desabitada.

Enquanto que os deslocados que se encontram nos campos ou centros são apoiados pelo governo, e têm uma ajuda mensal para a alimentação, os restantes, apesar das promessas, nada recebem e sobrevivem com a ajuda dos vizinhos, que na maioria pouco tem.

O Campo de Refugiados de Malica e o sucesso da campanha solidária

Ao visitar o campo de deslocados de Malica pela primeira vez deparei-me com cerca de 40 famílias distribuídas por tendas. O que mais me marcou nesta primeira visita foi o rosto de sofrimento, tristeza e medo das crianças, que desapareceu depois da minha terceira visita ao mesmo campo, quando as mesmas crianças já me receberam com um sorriso nos lábios e me pediram uma bola para poderem jogar.

Foi na primeira visita a este campo que surgiu a necessidade premente de fazer algo para ajudar ciente de que as necessidades eram muitas…

Gosto de pensar que o mundo ainda não acabou porque, apesar de existir muita maldade também existe muita bondade e mais uma vez comprovei a minha teoria quando, em conversa com a minha cunhada Lucinda e a sua irmã Joana, demos início a uma campanha pela altura do Natal de 2020 que consistiu na criação de um grupo no WhatsApp composto por amigos e conhecidos que sensibilizados por esta causa contribuíram com valor monetário para que eu pudesse colmatar algumas das necessidades mais prementes destes deslocados. Esta campanha foi um sucesso e tenho que agradecer também ao grupo de Leigos dos Missionários do Verbo Divino de Braga que canalizaram o valor angariado na sua campanha de Natal para esta causa. Entre muitos, que em grupo ou individualmente contribuíram, vai o meu profundo agradecimento. Não posso deixar de agradecer também ao Colégio Nossa Senhora da Conceição, em Braga; à SocialisRep e à minha Congregação que também contribuíram. A todos os mencionados e aos não mencionados ASSANTE (obrigada).

A ajuda prestada, foi feita a partir do levantamento das necessidades existentes, e do valor angariado. Desde roupa, calçado e lenha, que cá é um bem essencial para cozinhar, até à alimentação básica que é composta por farinha, arroz, massa, feijão, verdura, óleo, sal, açúcar…

Os testemunhos dos deslocados

Apesar de vários países e organizações estarem a ajudar monetariamente os deslocados, infelizmente esses valores em grande parte não são aplicados para o fim a que se destinam ou não são bem distribuídos, porque na realidade todas as famílias de deslocados que estão a viver nas comunidades do meu bairro não recebem nenhum apoio.

Depois de, numa primeira fase, ter dado apoio aos deslocados dos campos e centros, neste momento, devido ao crescente número de famílias neste bairro que não têm nenhum tipo de ajuda, estou a ajudar com um cabaz mensal composto por produtos mais importantes e para resposta a alguns dos pedidos que me são feitos a necessidades pontuais, como agora com a abertura das escolas é necessário uniformes, calçado, pasta e material escolar para cada criança deslocada. Poderíamos pensar em perguntar, quando se pergunta a um deslocado que teve de fugir com a roupa no corpo e deixar tudo o resto para trás, do que é que ele precisa, mas isso não faz sentido. Por isso pergunto-lhes o que lhes mais faz falta e é surpreendente a resposta: “o que poder dar, porque não temos nada e qualquer coisa é bem-vinda, a começar por comida.”

Marcou-me muito o relato de um grupo de sobreviventes que conseguiram fugir deste terror “…eles vieram de repente e nós fugimos todos de casa e só tivemos tempo de nos esconder na pocilga dos porcos, mas, nem todos conseguimos…os que foram apanhados foram cortados aos bocados para que os que estavam escondidos ao verem isso a acontecer acabassem por aparecer…mas conseguimos ficar em silêncio e eles acabaram por ir embora… e nós os que conseguimos fugir, continuamos a fugir e agora estamos aqui e sabemos que não podemos voltar…”

“…eles entravam em casa de repente e mataram algumas pessoas à nossa frente e depois mandaram-nos embora para contarmos o que eles tinham feito…”

“…tocaram o sino da Igreja e as pessoas saíram de casa e reuniram-se no meio da aldeia como costumavam fazer quando era preciso dar alguma informação importante…. eles mandaram as crianças embora e pegaram fogo às pessoas que não fossem muçulmanas e recusassem ser insurgentes e quem tentava fugir era morto a tiro…”

“…as pessoas de idade não conseguiam caminhar longos percursos por isso tiveram de ser deixadas para trás…”

A atrocidade patente em alguns dos relatos não se pode descrever.

Em suma, a todos aqueles que lerem estas linhas e poderem ajudar através da Fundação Ajuda à Igreja que Sofre (AIS) ou da minha Congregação das Irmãs Reparadoras de Nossa Senhora de Fátima, em nome deste povo a minha gratidão…

ASSANTE, KANIMAMBO, ZIKOMO, KOCHUKURU (Obrigada)

Irmã Maria Mónica Moreira da Rocha

Lichinga/Moçambique, 30 de abril de 2021